As memórias de António

Há duas qualidades que não posso atribuir a António Costa. A primeira é a eloquência discursiva, mas confesso que esta não me incomoda muito. Os “bamuslábêre” do Sr. Primeiro-Ministro até animam as desastrosas conferências de imprensa em que são anunciadas as medidas a adotar durante o estado de emergência (e em que percebemos que o Governo anda a nadar na maionese no combate à pandemia). A outra qualidade que não podemos atribuir a António Costa é uma boa memória (do seu próprio discurso).

Não sendo o tema que pretendo explorar com mais afinco neste texto, mas que reforçam que o Sr. Primeiro-Ministro deveria tomar uns Memofantes (confesso que tive que pesquisar na internet), é a célebre novela entre António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Mário Centeno quando este último fez uma transferência de 850 milhões de euros para o Fundo de Resolução para efeitos de capitalização do Novo Banco, alegadamente à revelia de António Costa, que por sua vez jurava aguardar por uma auditoria ao Novo Banco. Esta novela resultou num pseudo-anúncio da candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa para um segundo mandato ao cargo de Presidente da República, que ainda estamos para confirmar (criticando aqui o atual Chefe de Estado pela covardia de estar a evitar o escrutínio público a que um candidato presidencial estaria sujeito). Ora, como sabemos, na aprovação do orçamento do estado para 2021, o PSD alinhou com o Bloco de Esquerda impedindo que fosse inserida uma dotação que permitiria a transferência de 476 milhões para o Fundo de Resolução para capitalização do Novo Banco, tendo o PSD confirmado que aprovaria tal transferência num orçamento retificativo (ou suplementar em linguagem socialista) após auditoria de Tribunal de Contas ao Novo Banco. Vejo algumas semelhanças nas histórias, mas desta vez António Costa ficou chateado, se calhar já não concorda com António Costa.

Mas vamos ao tema que mais me preocupa. Há umas semanas caiu o Carmo e a Trindade porque o PSD Açores fez um acordo com Chega Açores em que este viabilizaria um Governo regional de direita (aprovaria orçamentos e não votaria a favor de moções de censura). Não sendo particular fã deste acordo, não acho que seja o fim da direita democrática em Portugal nem do PSD, na verdade, penso haver muito barulho por nada (mas não é este o tópico quero discutir aqui, estando disponível para conversar sobre este assunto com quem por ventura tenha alguma curiosidade em saber aquilo que penso). Perante este tão criticado e escrutinado acordo, ouvimos António Costa proferir as seguintes palavras “independentemente do que diga o acordo secreto, o simples facto de haver um acordo é em si mesmo da maior gravidade. A normalização da extrema-direita xenófoba é abrir a porta aos inimigos da democracia, porque quem é xenófobo ofende o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana”. Contudo, António Costa volta a discordar de António Costa e ficámos a saber, sem grande surpresa, que Portugal esteve ao lado da Hungria e da Polónia ao contestar a indexação da política orçamental europeia aos mecanismos de salvaguarda do Estado de Direito (vide notícia do Público aqui). Os governos do partido de Andrzej Duda e de Viktor Orban têm adotado medidas devastadoras contra o Estado de Direito Democrático, atacando o sistema judiciário, a independência dos meios de comunicação e os direitos de algumas minorias, permitindo que muitos questionem se estes países mantêm condições para permanecer na União Europeia (sobre a queda da democracia na Polónia e na Hungria vejam este e este artigos do The Guardian). Ou seja, para negociar com extremas-direitas populistas, xenófobas e homofóbicas de outros países o Sr. Primeiro-Ministro já não acha que se ultrapassam grandes linhas vermelhas. Incoerência? Talvez. Só espero que António Costa seja submetido ao mesmo escrutínio público a que foi alvo Rui Rio aquando do acordo dos Açores. Infelizmente parece que o Dr. António passa sempre pelos pingos da chuva.

 

Felipe Correia dos Santos

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