Presidenciais 2020 – Análise da entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa a João Adelino Faria, na RTP (29/12/2020)

Ponto prévio: Das eleições em pandemia – Ciclo noticioso e perguntas aos candidatos

Portugal está, neste momento, prestes a debruçar-se sobre uma decisão que marcará os próximos cinco anos da nossa vida comunitária. Especialmente num momento como o atual, com restrições objetivas ao estilo de campanha tradicional, baseada em comícios, recai uma responsabilidade acrescida sobre o jornalismo, promovendo a informação e o contraditório aos candidatos presidenciais.

Procura este texto analisar e questionar algumas das perguntas e respostas oferecidas na entrevista dada pelo candidato Marcelo Rebelo de Sousa ao jornalista da RTP João Adelino Faria, no dia 29 de dezembro de 2020.

Ainda antes de o fazer, gostaria, como ponto prévio, lamentar que, regra geral, as entrevistas realizadas nas televisões busquem comentários sobre a espuma dos dias, sem questionar sobre o futuro ou o seu reflexo em termos do exercício do mandato presidencial. Pior sucede quando objetivamente os candidatos são tratados de forma diferente e, como infelizmente acontece com o entrevistador João Adelino Faria, as questões, o tom inquisidor, as sucessivas interrupções e expressões faciais variem consoante o candidato e o eventual temor referencial que este lhe inspire.

É certo que se depreende que existem pessoas que se propuseram à mais elevada magistratura de Portugal, com outros propósitos que não o de exercer o mandato. Em todo o caso, um sistema maduro e um jornalismo rigoroso deve ser capaz de ultrapassar essa consideração, tratando todos os candidatos por igual e como pessoas que efetivamente pretendem ser Presidentes da República. Os portugueses devem, pois, perceber o modo como cada candidato se propõe exercer o mandato que temos de assumir que ambiciona. Outro tipo de considerações (designadamente, como publicidade para outros voos) servem apenas para poluir um debate importante e penso que uma entrevista se deve abster de as promover (como, por vezes, sucedeu em entrevistas a outros candidatos).

 

Análise da entrevista ao candidato Marcelo Rebelo de Sousa

1. Não perguntar por que motivo se (re)candidata

Pode parecer desnecessário, ou elementar, mas a entrevista a qualquer candidato deve começar com a pergunta acerca dos motivos que levam o candidato a pretender ser Presidente da República.

 A questão tem importância redobrada em relação a um incumbente e, em especial, a Marcelo Rebelo de Sousa que, enquanto comentador na TVI (conforme fact checking promovido pelo Polígrafo e pelo Observador), defendeu que o mandato do Presidente da República devia ser único, acrescentando o seguinte: 

“Aliás, deixo essa sugestão para os futuros candidatos presidenciais. Que proponham aos partidos, porque têm de ser eles a rever a Constituição, que reduzam um futuro mandato apenas a um e não dois — mais longo, seis anos, sete anos. E, no caso de isso não acontecer, assumam o compromisso de serem [Presidentes da República] só por um mandato”.

 A questão é ainda mais importante, uma vez que o agora recandidato tem a tese que outros mandatos que indubitavelmente não são únicos, como o de Procurador-Geral da República (PGR) e o de Presidente do Tribunal de Contas (TdC) (desde logo, porque, com o mesmo enquadramento jurídico, os antecessores foram reconduzidos), decidiu não reconduzir Joana Marques Vidal nem Vítor Caldeira nos mandatos que exerceram. Veja-se a justificação da tese de Marcelo em relação ao alegado mandato único do Presidente do TdC nesta notícia do Expresso.

Independentemente da posição que se possa ter (e eu sou favorável à renovação dos mandatos, mas não é este o tempo para explicar porquê), a questão que se coloca é saber se Marcelo mudou de opinião e, em todo o caso, por que motivo decide aplicar a outros um critério que não segue para si mesmo. (E, já agora, saber por que motivo não usou a magistratura de influência para reconduzir Joana Marques Vidal e Vítor Caldeira.)

Mais: Ao tardar na divulgação de uma decisão que se crê ter estado há muito tomada (desde logo, porque a recolha de assinaturas começou antes da divulgação oficial da candidatura [1]), o incumbente fez com que eventuais pessoas da sua área política nem meditassem sobre a possibilidade de se candidatarem.

Por que quer tanto, afinal, Marcelo continuar a ser Presidente?

  

2. O poder presidencial na análise do Orçamento do Estado

 O candidato, na pele de Presidente da República, refere o seguinte na entrevista (entre o minuto 03:29 e o minuto 03:50 da entrevista à RTP)

“Estar a chumbar um orçamento ou estar a enviá-lo para o Tribunal Constitucional – e houve quem o fizesse; o meu antecessor fez – é um tipo de atitude ou de decisão que eu respeito, mas que, naquilo que o país tem vivido e têm sido sempre situações muito complicadas, não é indicado, não é aconselhável.”

Não se compreende como cumpre a sua palavra alguém que jura cumprir, fazer cumprir e defender a Constituição e, tendo dúvidas acerca da conformidade constitucional do Orçamento, não o envia para o Tribunal Constitucional. Note-se que não estou a dizer que tenho dúvidas sobre a conformidade constitucional deste Orçamento. Não o conheço a fundo para manifestar essa opinião. No entanto, o que merece análise para o exercício do mandato presidencial é que Marcelo Rebelo de Sousa refere expressamente que, ao contrário de Cavaco Silva, se tiver dúvidas sobre o respeito do Orçamento pela Constituição poderá não o enviar para o Tribunal Constitucional. Marcelo nem se pergunta se o deve fazer como fiscalização preventiva (i.e., impedindo a sua entrada em vigor antes de o Tribunal Constitucional se pronunciar), ou como fiscalização sucessiva (já depois da entrada em vigor como fez Cavaco Silva).

João Adelino Faria não fez contraditório e aceitou impávido, sem questionar, que um Presidente em exercício dissesse que afinal, tendo dúvidas, pode não cumprir, fazer cumprir nem defender a Constituição, porque não é “indicado”, nem “aconselhável”.

  

3. A direita e os vetos do Presidente

A propósito da questão sobre se a direita teria motivos para estar desiludida com Marcelo, o candidato, referindo-se ao seu mandato, diz, a partir do minuto 18:50, que “vetou como nenhum outro presidente” no primeiro mandato, acrescentando que coabita com o Governo, garante que a legislatura vai até ao fim e não demite o Governo, nem dissolve a Assembleia da República. Depois acrescenta que o Presidente é independente, nem é de fação.

Talvez João Adelino Faria devesse ter concretizado melhor, questionando diretamente Marcelo sobre alguns motivos pelos quais algumas pessoas poderiam estar desiludidas. Este artigo de opinião de Maria João Avillez teria ajudado.

Em todo o caso, o contraditório impunha que se dissesse que o veto por si mesmo não significa que o Presidente serve de encontro ao Governo e vice-versa. Tudo está em saber se o veto ocorreu em Decretos-Leis (elaborados pelo Governo e em que o veto é definitivo) ou em Leis elaboradas pela Assembleia da República. Neste último caso, importaria saber a composição parlamentar que levou à aprovação de tais leis.

Note-se que o papel do Presidente não é, como diz Marcelo, o de ser “Presidente de fação”, mas, quando o Presidente refere que a Direita não tem motivos para estar desiludida por causa dos vetos, a questão impõe-se.

  

4. A eutanásia

A última pergunta, com tempo de resposta manifestamente insuficiente para contraditório (cerca de dois minutos), foi mal colocada por João Adelino Faria. Vejamos, em concreto, o que perguntou (entre os minutos 25:28 e 25:54): 

Sobre o diploma de morte assistida, já disse que todos os cenários estão em aberto. (…) O que deve fazer um presidente católico quando receber este diploma concluído, em cima da mesa, de uma lei que permite a morte assistida?

O candidato e presidente respondeu bem, ao referir que o Presidente, não é presidente de católicos, mas de todos os portugueses. A resposta está correta, para uma pergunta mal colocada. A pergunta não deve ser o que faz um Presidente católico, mas antes a de saber se a mundividência e a ideologia de um candidato são aspetos que os portugueses devam ter em conta na hora do voto.

A questão é importante, dado que Marcelo Rebelo de Sousa tem tido intervenções públicas sobre a questão (por exemplo, prefaciando livros).

Se é irrelevante a ideologia e a mundividência, não faz sentido a eleição do Presidente ser direta. Se não é irrelevante, temos de perceber quais são as posições que os diversos candidatos têm sobre os diversos assuntos, esperando que ajam de acordo com essas posições. Note-se que tal não contende com um Presidente concordar ou não com a composição da Assembleia da República. O Presidente também vota nas eleições e respeita os resultados eleitorais, mas, de acordo com os seus poderes (designadamente o veto), o Presidente pode e deve agir de acordo com aquela que é a sua mundividência sabendo, em todo o caso, que é ao Governo que compete governar.

Em todo o caso, nem sempre a questão ideológica tem sido afastada pelo Presidente, como demonstra o veto a uma lei sobre o direito de preferência (ver notícia no Expresso).

Em suma, precisamos de um jornalismo mais exigente e de uma Comunidade atenta durante as próximas semanas, para votarmos em consciência.

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[1] Mas também pelas sucessivas mudanças de posição quanto a uma eventual divulgação da candidatura. Na entrevista à RTP, entre os minutos 12:30-13:22 refere: “É verdade que na minha recandidatura havia dois fatores essenciais que me obrigaram a esperar até novembro, para realmente, de alguma maneira tornar mais sólida a convicção surgida quando apareceu a pandemia, de que iria ser candidato, devia ser candidato. Primeira: o estado de saúde. Eu só fiz os exames que tinha de fazer no final de outubro, princípio de novembro. (…) Segunda que é, eu em 2017 disse aos portugueses ‘Se isto se repetir e houver cento e tal mortos eu não sou candidato. Obviamente, não tenho cara para ser candidato. Portanto eu tinha de esperar pela época dos fogos que incluía outubro (…)”. Anteriormente, tinha-se desculpado com a necessidade de tomar medidas relativas ao estado de emergência enquanto Presidente e não enquanto candidato. Como se sabe o mandato continua e, entretanto, Marcelo já teve de agir (e continuará a agir, como bem lembra nas sucessivas entrevistas) como presidente e não como candidato, promulgando o Orçamento do Estado. Tudo para dizer que estou convencido que Marcelo inventou pretextos, para não aventar razões.

José Francisco Veiga


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