Avante com a hipocrisia

Adianto desde já que ao escrever este texto sou capaz de revelar os meus “tiques autoritários e anti-democráticos”, características partilhadas por todas aquelas pessoas que acham pouco prudente organizar um festival por onde passarão 33 mil pessoas numa altura em que já se fala numa possível segunda vaga de uma doença que já não necessita de apresentações.

Sei que não sou o primeiro a abordar o tema, tampouco serei o último, mas vamos por partes, para que possa tentar transmitir tudo aquilo que me incomoda com a Festa do Avante deste ano (as restantes não me incomodam, confesso até ter curiosidade em participar em futuras edições). Numa notícia do Expresso (que pode ser consultada aqui) tive a oportunidade de ler a seguinte frase: “Comunistas entendem que o público deve assistir de pé, como é habitual, ainda que salvaguardando o distanciamento de segurança. DGS discorda, o que estará a provocar um impasse nas negociações.” Confesso que a palavra que mais me surpreende nesta frase é a palavra “negociações”, pois não consigo compreender que existam negociações nesta matéria. Já trabalhei como advogado nesta minha vida, por vezes tínhamos de negociar contratos, a negociação consistia em cedências e exigências de ambas as partes até a redação final de um contrato em que o interesse de todas as partes estivesse satisfeito (pelo menos aparentemente). Não compreendo como a DGS pode negociar exigências que visam a proteção da saúde pública, visto que negociações implicam cedências. Quando alguém quer abrir um restaurante não entra em negociações com a ASAE.

Depois segue-se a incoerência (marca registada na gestão desta pandemia). Enquanto autorizamos a realização de um festival em que milhares de pessoas estarão a conviver umas com as outras, também dizemos que crianças que são retiradas às famílias ficam obrigadas a isolamento de 14 dias, mesmo que testem negativo. Ou seja, adultos que se ponham, a si e aos seus filhos, conscientemente em situação de risco (uma situação de risco óbvia), podem continuar as suas vidas normalmente, já crianças que sejam retiradas aos seus familiares por se encontrarem em situação de risco (e não risco de contágio de Covid 19, que infelizmente ainda há coisas piores neste mundo) ficam obrigadas a estar em isolamento, esquecendo todos os efeitos psicológicos que este isolamento poderá causar a uma criança que já se encontra numa situação fragilizada.

O deputado Jerónimo de Sousa defende com unhas e dentes a necessidade de realização da Festa do Avante, afirmando que este não é um festival, mas sim um evento de intervenção política em que se defendem os valores do partido, nos quais se incluem a defesa dos trabalhadores, que neste momento encontram-se numa situação de maior fragilidade. Não nego que a Festa do Avante tenha uma vertente de intervenção política, contudo não deixa de, ao mesmo tempo, ser um festival, como vários outros que foram cancelados e cujos promotores respeitaram a decisão do Governo. Sou trabalhador subordinado e delegado sindical, não vejo como a Festa do Avante irá defender o meu interesse e o interesse do proletariado, considero que a organização desta festa, este ano, é uma falta de respeito para com todo o sacrifício pelo qual tivemos de passar até à presente data (estou ciente que pessoalmente não fiz nenhum sacrifício sobre-humano, mas o grau de sacrifício coletivo não se mede através da minha pessoa).

O Governo autorizou a realização da Festa do Avante porque precisa de apoio político da esquerda, neste mandato não há geringonça, pelo que é necessário criar geringonças frequentemente conforme a necessidade de aprovar diplomas. Poderia censurar o Governo por cair nesta tentação (e censuro), mas também cabe ao Governo evitar crises políticas, por isso foco as minhas críticas no Partido Comunista Português, porque, sabendo do poder político que acaba por ter, faz um uso indevido e egoísta desta sua prerrogativa.

Por fim, não deixa de ser curioso que seja um partido comunista que por evidentes razões de cash flow insiste na organização de uma festa, em plena pandemia, onde estarão presentes 33 mil pessoas (ainda me lembro quando 11 amigos se reuniam e já eram uns bandidos).

 

Felipe Correia dos Santos

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